Saldo Livre vs. Premiação: Quando incide encargos trabalhistas no cartão de benefícios?

Você abriu a plataforma de benefícios da sua empresa e viu aquela categoria tentadora chamada "Saldo Livre" ou "Saldo Flexível". Diferente do Vale-Alimentação que só funciona no supermercado ou do Vale-Refeição que só passa no restaurante, esse aí pode ser usado em QUALQUER LUGAR. Melhor ainda: dá para sacar, fazer PIX e pagar boletos.
E aí bate aquela ideia:
"Por que não aumentar o salário da equipe em R$ 500,00 por mês usando essa gaveta? Assim a gente não paga INSS nem FGTS sobre esse valor. Todo mundo ganha, né?"
Calma. Respira fundo. Senta que lá vem história.
Se você está pensando nisso, você não está sozinho — e também não está errado em querer otimizar custos. O problema é que a Receita Federal e a Justiça do Trabalho estão de olho exatamente nessa ideia. E quando eles decidem que você cruzou a linha entre "benefício inteligente" e "salário disfarçado", a conta fica muito mais cara do que os encargos que você tentou economizar.
Neste artigo, vamos te explicar exatamente onde está essa linha, como usar o Saldo Livre da forma correta (e legal), e por que ele é uma ferramenta incrível para premiação, mas péssima para complemento salarial.
Vamos direto ao que interessa.
O que é a "Gaveta" de Saldo Livre no Cartão de Benefícios?
Antes de falar sobre os riscos, vamos entender o que é esse tal Saldo Livre e por que ele existe.
A definição prática
O Saldo Livre é a única categoria do cartão multibenefícios que não tem restrição de MCC (Merchant Category Code). Enquanto o Vale-Alimentação só funciona em supermercados e o Vale-Refeição só em restaurantes, o Saldo Livre pode ser usado literalmente em qualquer estabelecimento que aceite a bandeira do cartão.
Mais do que isso: em muitas operadoras, ele permite saques em caixas eletrônicos, pagamento de boletos via app, e até transferências via PIX para outras contas.
Por que ele existe?
O Saldo Livre foi criado para dar às empresas uma forma de oferecer benefícios verdadeiramente flexíveis — aqueles que não se encaixam nas categorias tradicionais e reguladas como Alimentação, Refeição ou Mobilidade.
Pense em situações como:
- Bonificação por bater metas trimestrais
- Prêmio de aniversário de tempo de casa
- Reconhecimento por projeto excepcional
- Auxílio pontual em momentos de necessidade específica
São valores que não fazem sentido estar travados em "só supermercado" ou "só restaurante". O colaborador precisa da liberdade total para usar como melhor lhe atender.
A diferença fundamental
Aqui está o ponto que você PRECISA entender desde já:
Enquanto o VA/VR é isento de encargos por força de lei (PAT), o Saldo Livre NÃO TEM essa proteção automática.
A isenção dos valores de Alimentação e Refeição vem do Programa de Alimentação do Trabalhador, que é uma política pública com regras claríssimas. O governo diz: "Se você der alimento ao trabalhador dessa forma específica, não precisa pagar INSS e FGTS sobre esse valor."
O Saldo Livre não entra nessa categoria. Ele não é alimentação, não é transporte regulado, não é nada que tenha uma lei específica dizendo "isso aqui é isento".
Então, quando você coloca dinheiro no Saldo Livre, a pergunta que a Receita Federal e a Justiça do Trabalho vão fazer é: "Isso é um prêmio eventual ou é salário disfarçado?"
E a resposta para essa pergunta define se você paga ou não paga encargos. Simples assim.
A Reforma Trabalhista e o Conceito Legal de "Prêmio"
Agora vamos ao coração da questão: o que diferencia um prêmio isento de uma remuneração tributada?
O Artigo 457 da CLT: o divisor de águas
A Reforma Trabalhista de 2017 (Lei 13.467/2017) mudou completamente as regras do jogo quando alterou o Artigo 457 da Consolidação das Leis do Trabalho.
Antes da reforma, praticamente tudo que a empresa pagava ao funcionário com alguma regularidade era considerado salário e, portanto, base para encargos. Depois de 2017, o cenário mudou drasticamente.
O que diz o § 2º do Art. 457:
"As importâncias, ainda que habituais, pagas a título de ajuda de custo, auxílio-alimentação, vedado seu pagamento em dinheiro, diárias para viagem, prêmios e abonos não integram a remuneração do empregado, não se incorporam ao contrato de trabalho e não constituem base de incidência de qualquer encargo trabalhista e previdenciário."
Leu bem? "Ainda que habituais". Ou seja, mesmo que você pague prêmios com certa frequência, eles podem não integrar o salário.
Mas espera. Não é assim tão simples.
O § 4º define o que é prêmio
O mesmo artigo 457, no seu parágrafo 4º, estabelece claramente:
"Consideram-se prêmios as liberalidades concedidas pelo empregador em forma de bens, serviços ou valor em dinheiro a empregado ou a grupo de empregados, em razão de desempenho superior ao ordinariamente esperado no exercício de suas atividades."
Essa frase em negrito é a chave de tudo.
A regra de ouro: desempenho extraordinário
Para que um valor pago no Saldo Livre seja considerado "prêmio" (e portanto isento de encargos), ele precisa estar vinculado a um desempenho superior ao normal.
Não é o pagamento pelo trabalho em si. É o pagamento por ter ido além, por ter feito algo excepcional, por ter entregado resultados acima da média.
Exemplos de prêmio legítimo:
- Equipe de vendas bateu 150% da meta trimestral → R$ 1.000 no Saldo Livre para cada um
- Colaborador desenvolveu projeto que economizou R$ 50.000 para a empresa → R$ 2.000 de prêmio
- Time de TI finalizou migração crítica 15 dias antes do prazo → R$ 800 por pessoa
Exemplos de "prêmio" que é na verdade salário:
- Todo funcionário recebe R$ 300 no Saldo Livre no dia 5 de cada mês, independente de qualquer coisa
- Valor fixo pago mensalmente sem nenhuma vinculação a metas ou desempenho
- Quantia "por estar empregado" em vez de "por ter feito algo excepcional"
Viu a diferença?
A Armadilha da Habitualidade: Quando o "Prêmio" Vira Salário?
Aqui está onde a maioria das empresas escorrega — e onde os fiscais trabalhistas adoram atuar.
O erro mais comum (e mais caro)
Imagine essa situação real que acontece em milhares de empresas brasileiras:
A empresa decide "modernizar" e oferece um cartão multibenefícios. Configura R$ 400 de Vale-Alimentação, R$ 200 de Vale-Refeição e... R$ 300 de Saldo Livre.
Esse valor de R$ 300 é creditado todo mês, no mesmo dia, para todos os funcionários, sempre no mesmo valor. Não há meta, não há critério, não há variação. É simplesmente parte do "pacote de benefícios".
ERRADO. Muito errado.
O que a Justiça do Trabalho vai entender
Quando um funcionário entrar com ação trabalhista (e alguém sempre entra), o juiz vai olhar para os holerites, vai ver aquele R$ 300 caindo todo santo mês, e vai fazer uma pergunta simples:
"Qual foi o desempenho extraordinário que justificou esse pagamento em fevereiro? E em março? E em abril? E em todos os meses dos últimos 3 anos?"
A empresa não vai ter resposta. Porque não houve desempenho extraordinário. Era um valor fixo, habitual, sem critério.
Conclusão do juiz: Isso não é prêmio. Isso é salário disfarçado de prêmio para fugir de encargos.
As consequências jurídicas
Quando a Justiça do Trabalho reconhece natureza salarial em uma parcela que a empresa pagava como "prêmio", as consequências são devastadoras:
1. Pagamento retroativo de todos os encargos
A empresa terá que pagar, retroativamente por até 5 anos:
- INSS Patronal (pode chegar a 28,8% dependendo do enquadramento)
- FGTS (8%)
- Reflexos em férias (1/3 adicional sobre o valor)
- Reflexos em 13º salário
- Reflexos em verbas rescisórias
2. Multas
Além dos valores devidos, incidem multas que podem variar de 75% a 200% do valor devido, dependendo se houver caracterização de fraude intencional.
3. Juros e correção monetária
Todo esse débito retroativo ainda será acrescido de juros moratórios e correção monetária, que podem dobrar o valor total.
Exemplo prático:
Empresa com 30 funcionários pagando R$ 300/mês de "Saldo Livre" sem critério por 3 anos:
- Total pago: R$ 324.000 (30 × R$ 300 × 36 meses)
- Encargos devidos retroativamente: aproximadamente R$ 119.000
- Multas (estimativa conservadora de 75%): R$ 89.000
- Total da conta: cerca de R$ 208.000
Isso sem contar os juros, a correção monetária, os honorários advocatícios e o desgaste de imagem.
Checklist Definitivo: É Premiação (Isento) ou Salário Disfarçado (Tributado)?
Vamos facilitar sua vida com uma tabela clara que você pode consultar sempre que for configurar um Saldo Livre:
Perguntas para fazer antes de creditar Saldo Livre
Antes de colocar qualquer valor no Saldo Livre de um colaborador, passe por este checklist:
✓ Existe uma meta ou objetivo claro que foi superado?
- Se sim: pode ser prêmio
- Se não: é salário
✓ O valor varia conforme o desempenho individual ou da equipe?
- Se sim: pode ser prêmio
- Se não: é salário
✓ Todos os funcionários recebem o mesmo valor, sempre?
- Se sim: é salário
- Se não: pode ser prêmio
✓ Há documentação escrita explicando os critérios?
- Se sim: pode ser prêmio
- Se não: está em risco
✓ O pagamento acontece todo mês, independente de resultados?
- Se sim: é salário
- Se não: pode ser prêmio
Como Usar o Saldo Livre do Jeito Certo (e Seguro)
Agora que você já sabe o que NÃO fazer, vamos ao que PODE e DEVE fazer com o Saldo Livre.
Uso 1: Bonificações por metas atingidas
Cenário: Sua equipe de vendas bateu a meta trimestral de faturamento.
Como fazer corretamente:
- Defina critérios claros ANTES: "Se a equipe atingir R$ 500.000 em vendas no trimestre, cada membro recebe R$ 800 de prêmio."
- Documente: Tenha isso por escrito na política de premiação da empresa, com assinatura dos gestores e conhecimento do RH.
- Comunique: Quando a meta for batida, envie um comunicado formal parabenizando a equipe e informando o valor do prêmio.
- Varie: No próximo trimestre, a meta pode ser diferente, o valor pode ser diferente. Não crie um padrão fixo.
- Registre: Mantenha atas, e-mails, relatórios de desempenho — tudo que comprove que aquele valor foi pago por desempenho extraordinário.
Resultado: Isso é um prêmio legítimo. Isento de encargos.
Uso 2: Reconhecimento por projetos excepcionais
Cenário: Um colaborador desenvolveu uma solução que economizou R$ 30.000 anuais para a empresa.
Como fazer corretamente:
- Avalie o impacto: Documente formalmente o projeto e o resultado alcançado.
- Defina o prêmio: "Por ter entregue esse projeto com impacto significativo, você receberá R$ 1.500 de prêmio."
- Não regularize: Esse colaborador não recebe R$ 1.500 todo mês a partir de agora. Foi um pagamento pontual por aquele projeto específico.
- Registre: Mantenha a documentação do projeto, a avaliação do gestor, e a decisão de premiação.
Resultado: Prêmio legítimo. Isento de encargos.
Uso 3: Presentes por tempo de casa
Cenário: Colaborador completou 5 anos de empresa.
Como fazer corretamente:
- Política clara: Tenha uma política de que em aniversários de 5, 10, 15 anos, a empresa oferece um prêmio de reconhecimento.
- Valor pontual: Pode ser R$ 500, R$ 1.000, R$ 2.000 — mas é pago uma única vez naquela data comemorativa.
- Não é mensal: Não confunda com "abono" mensal. É um marco, uma comemoração.
- Documente: Tenha a política por escrito e registre cada celebração.
Resultado: Considerado prêmio/liberalidade. Forte argumento para isenção.
O que NÃO fazer (repetindo porque é importante)
NÃO credite R$ 300 de Saldo Livre todo dia 5 para todo mundo
NÃO use como "aumento de salário disfarçado"
NÃO pague valores fixos sem critério de desempenho
NÃO deixe de documentar os motivos do pagamento
NÃO confunda "prêmio" com "comissão" (comissão É salário!)
E os Outros Saldos? (Home Office, Cultura, Mobilidade)
Você pode estar se perguntando: "E aqueles outros saldos do cartão multibenefícios? Mobilidade, Home Office, Cultura? Eles também têm risco de incidência de encargos?"
A resposta é: depende de como você usa.
A diferença fundamental: natureza indenizatória vs. natureza salarial
Saldos como Home Office, Cultura e Mobilidade podem ter natureza indenizatória quando comprovadamente usados para custear despesas relacionadas ao trabalho ou qualidade de vida que beneficia o desempenho profissional.
Home Office (Auxílio Infraestrutura):
- Se usado para pagar internet, luz, cadeira ergonômica, mesa — despesas que o colaborador tem PORQUE trabalha de casa
- Tem forte argumento de natureza indenizatória
- Mas atenção: precisa ser razoável e proporcional
Cultura e Educação:
- Se usado para cursos, livros, eventos que de alguma forma contribuem para o desenvolvimento profissional
- Pode ser considerado benefício de qualidade de vida
- Argumento mais frágil que Home Office, mas existe
Mobilidade:
- Se usado para transporte relacionado ao trabalho (ir ao escritório, reuniões externas)
- Similar ao vale-transporte tradicional
- Boa base para isenção
O grande perigo: transferir VA/VR para Saldo Livre
Aqui está uma prática que algumas empresas tentam e que é absolutamente proibida:
Pegar dinheiro das categorias de Alimentação e Refeição (que são protegidas pelo PAT) e transferir para o Saldo Livre.
POR QUE ISSO É TÃO GRAVE?
Porque você estaria desviando recursos de uma finalidade específica (alimentação do trabalhador) que goza de incentivo fiscal, e transformando em dinheiro livre que pode ser usado para qualquer coisa.
Isso não só faz você perder a isenção sobre aquele valor específico — pode contaminar TODOS os benefícios e fazer você perder o cadastro no PAT inteiro.
Consequência:
- Perda retroativa de todos os incentivos fiscais do PAT
- Necessidade de pagar INSS e FGTS sobre TODOS os valores de VA/VR pagos nos últimos anos
- Multas pesadíssimas
- Possível enquadramento em fraude fiscal
Regra de ouro: Alimentação e Refeição são intocáveis. Nunca, em hipótese alguma, tente flexibilizar esses valores para outras categorias.
Conclusão: Consultoria Jurídica é Essencial (Não Opcional)
Vamos recapitular tudo com máxima clareza:
O Saldo Livre é uma ferramenta incrível quando usado corretamente
Ele permite que você:
- Reconheça e recompense desempenhos excepcionais
- Ofereça flexibilidade real aos seus colaboradores em momentos especiais
- Modernize a gestão de benefícios da empresa
- Crie uma cultura de meritocracia e reconhecimento
Mas é uma bomba-relógio quando usado incorretamente
Se você tentar usar o Saldo Livre para:
- Burlar encargos trabalhistas pagando "salário disfarçado"
- Substituir aumentos salariais legítimos
- Criar benefícios fixos e habituais sem critério de desempenho
Você está criando um passivo trabalhista e fiscal que pode ser muito mais caro do que os encargos que tentou economizar.
A linha divisória é clara
Prêmio legítimo:
- Pontual ou esporádico
- Vinculado a desempenho extraordinário
- Valor variável
- Bem documentado
- = ISENTO DE ENCARGOS
Salário disfarçado:
- Mensal e habitual
- Sem critério de desempenho
- Valor fixo
- Sem documentação
- = INCIDÊNCIA TOTAL DE ENCARGOS + MULTAS
Sua ação imediata
Antes de configurar qualquer política de Saldo Livre na sua empresa:
- Consulte um advogado trabalhista especializado em remuneração e benefícios
- Desenhe uma política clara e escrita com critérios objetivos de premiação
- Treine seus gestores sobre o que pode e o que não pode
- Documente tudo — metas, avaliações, decisões de premiação
- Revise periodicamente para garantir que não está criando habitualidade
Não use o cartão multibenefícios para burlar a CLT. Use para modernizar a gestão, valorizar o mérito e reconhecer quem vai além.
Quer Entender as Outras Categorias do Seu Cartão?
O Saldo Livre é apenas uma das gavetas do cartão multibenefícios. Existem outras categorias com regras específicas que você precisa conhecer:
- Alimentação e Refeição: Por que eles não se misturam? Como funciona o MCC?
- Mobilidade: Quais despesas entram? Uber conta?
- Home Office: Até onde vai a isenção?
- Cultura: Vale para streaming?
Leia nosso artigo sobre Vale-Alimentação vs. Vale-Refeição e entenda as regras de bloqueio do PAT.
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Última atualização: dezembro de 2025. As informações deste artigo são baseadas na CLT (Art. 457), Lei 13.467/2017 (Reforma Trabalhista) e jurisprudência consolidada. Para decisões específicas sobre sua empresa, consulte um advogado trabalhista especializado.
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